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O "MERCADO DA SOLIDÃO"

Uma breve visão sobre o papel da amizade nas relações de "consumo humano" que caracterizam a solitária sociedade contemporânea.

Imagem gentilmente cedida por Aaron Jean.


Você já se sentiu sozinho - digo 'solitário' de verdade?


O sentimento de solidão começa a ser apontado como uma das mais novas epidemias da cultura contemporânea. Mas os sinais não são novos. Há mais de 10 anos já surgia nos Estados Unidos um sintoma contundente, onde uma empresa anunciava: "FRIENDS FOR RENT!" ("Alugam-se Amigos!"). Já era o prenúncio de uma nova atividade que está surgindo também no mercado brasileiro. Isso mesmo, considerado como um dos países mais amigáveis do mundo, a amizade no Brasil agora vai começar a ganhar novos contornos financeiros, com impactos ainda imprevisíveis nos relacionamentos interpessoais.


Imagem gentilmente cedida por Unsplash.


Quanto você estaria disposto a pagar para alguém ser seu amigo?


A exemplo dos norte americanos, hoje no Brasil, você já pode contratar um "amigo de aluguel" no site do Mercado Livre, por exemplo, a um custo de R$ 160 a hora. Mas há quem cobre mais por aí. Numa pesquisa rápida identifiquei ofertas que chegam a R$ 300/h. Ou seja, parece que aquela noção de que "amizade não tem preço" começa a ser contestada….


Mas afinal, o que faz um AMIGO DE ALUGUEL??


Faz o que faria um amigo real e 'gratuito', caso você pudesse contar com ele! O amigo contratado será sua companhia quando você não quiser ir sozinho às compras, ao cinema, a um café, a uma festa, ou até a uma viagem. Ele também poderá resolver pequenos problemas práticos, como por exemplo desembaraçar aquele detalhe simples sobre algum serviço em algum lugar, ou mesmo para fazer companhia a seu pai em uma consulta médica quando você não puder ou não quiser estar presente ...


Nesse contexto, cabe a pergunta: quando falta a capacidade de acolher a si mesmo, é possível oferecer ou receber amizade e acolhimento de alguém? Para alguns sim, especialmente se for um bom negócio.

Imagem gentilmente cedida por rawpixel


Até aqui, ao que parece, a maior demanda para essa nova modalidade de "amigo" tem sido gerada pela necessidade de uma ESCUTA "NEUTRA". Os contratantes são pessoas que se sentem sozinhas demais e se recusam a buscar ajuda profissional (como psicólogos ou terapeutas) para encarar um momento ou uma fase de solidão. Pessoas que não tem ninguém para quem contar seus "perrengues", ninguém para compartilhar suas preocupações e angústias, ou que, por diferentes razões, preferem não expor seus problemas a alguém que possa ser impactado por suas dores. Ou mesmo serem julgadas por elas.


O interessante disso tudo é que não se pode calar a necessidade do ser humano de querer compartilhar momentos sensíveis com outro ser humano. Somos seres relacionais e essa é uma necessidade biológica, inclusive. Assim, na falta de melhor opção, na sociedade contemporânea as pessoas já estão preferindo contratar um "amigo desconhecido" para serem ouvidas, "sem compromisso" e sem julgamentos - em vez de correr o risco de "preocupar o outro", ou de mostrar-se "vulnerável" buscando ajuda junto a alguém de sua família, trabalho ou rede social. Até porque, às vezes, ser ouvido pode significar um risco à manutenção da autoimagem, do seu papel na família, ou do "status adquirido".


Então, já pensou o que levaria você a preferir contar com alguém para realizar aquelas coisas que talvez um “alô” a um amigo de infância, a um vizinho querido, ou a alguém com quem você nutre afinidades já poderia resolver?


As vantagens de optar por um “amigo contratado” nesses termos andam nessa linha: privacidade, descompromisso, liberdade, novidade, experimentação...


É possível que talvez você não tenha mesmo ninguém com quem contar nesse momento. Talvez, esteja numa cidade estranha, e falte alguém com a proximidade, o acolhimento, e a confiança desejáveis. (Qualidades cada vez mais raras porque só podem ser tecidas no decorrer do tempo e costuradas espontaneamente com uma boa dose de paciência e dedicação….) E tudo isso envolve as matérias-primas mais disputadas entre os humanos hoje: tempo e energia/ disposição.

Imagem de Denys Argyriou


Então, vejamos a questão do TEMPO e disponibilidade. Aquele mesmo tempo que, por qualquer razão, faltou para construir os vínculos significativos (cuja ausência lamentamos hoje). Mais que uma tendência, essa já é a "nova média" comportamental, especialmente entre os mais jovens: a incapacidade de investir em vínculos duradouros.


Cada vez menos gente consegue encontrar tempo para cultivar amizades — e aqui me refiro àquelas que são naturais, genuínas, sinceras de verdade. Afinal, elas são o resultado de uma escolha e uma CONSTRUÇÃO no decorrer da jornada. Essas amizades trazem em sua essência um dos princípios implícitos da amizade tal como a conhecemos em sua "forma original": "uma mão lava a outra"! Ou seja, você me ajuda e eu te ajudo. Não necessariamente nessa ordem, e também sem a necessidade de uma agenda pré-programada para o equilíbrio dessa troca.


Vale lembrar: na amizade real, as coisas acontecem e fluem naturalmente. Aliás, quem tem amigos à moda antiga sabe: é comum você nem precisar pedir... Um 'amigo de verdade' talvez saiba perceber o seu momento e possa ter a iniciativa de oferecer aquela ajuda — gratuita, sem expectativa de qualquer compensação por isso. O "retorno" costuma ser a própria manutenção e o fortalecimento do vínculo. É isso que gera prazer em uma amizade real: ela é recíproca, válida para bons e maus momentos. No entanto, querendo ou não, ela envolve investimento de tempo e de escolhas…. e esse é o desafio para as novas gerações de workholics excessivamente acelerados.


Há muitos aspectos que mereceriam destaque aqui, mas, sendo bem honestos, vamos nos ater ao seguinte: "…vivendo uma vida tão estressante como a maioria de nós vive hoje, quem tem PACIÊNCIA para ouvir com 'atenção plena' os problemas do outro?"


Bastam períodos de excessivo trabalho, ou alguma experiência com um amigo que "excedeu na dose" e já temos uma boa razão para nos fecharmos em nosso próprio casulo. Aliás, vivemos em espaços cada vez menores, não só por questões práticas mas também para dar conta de uma configuração de uma rotina com relacionamentos cada vez mais voláteis. Como provavelmente diria Zygmunt Bauman, numa vida que ganhou um estado 'líquido', até a amizade escorrerá pelos dedos! Você terá de pagar se quiser desfrutá-la, mesmo sabendo que é artificial e não será completa.


E ao CONTRATAR UM AMIGO, o que acontece é que você não gera vínculo nem se sente obrigado a retribuir nada! É parte do contrato. Você desfruta o serviço e não precisará empenhar nada mais. Nenhum tempo seu (além daquele necessário para a entrega do serviço) será exigido pelo contratado! Muito pelo contrário. Como se não bastasse, já há até quem defenda o direito de recorrer ao PROCOM para reclamar seus direitos - caso o "amigo contratado" possa trazer alguma frustração, ou caso ele não tenha desempenhado bem o serviço durante o tempo de contrato. Imagina isso?

É mesmo notável a forma como o mercado se vale das necessidades humanas para gerar novos serviços e novas relações comerciais. No Japão, virou febre a "esposa de algodão". É lá também onde já se paga para "dormir de conchinha"! Estranho? Isso mesmo, e sem nada de sexo envolvido! Contrata-se apenas a “pura” companhia do outro para se ter a sensação de receber calor humano - algo que está cada vez mais raro na maioria das sociedades atuais. E é justamente a ausência desse "calor humano" que caracteriza esse novo mercado emergente. Nele, paga-se por hora de "serviço humano". E paga-se bem.


O MERCADO DA SOLIDÃO É ISSO. Um olhar ávido , pronto para explorar as novas necessidades que estão emergindo à medida em que aumentam os riscos e os sintomas de stress, de ansiedade, solidão e depressão. Nesse contexto, o "mercado" faz aquilo que sabe fazer: ele se antecipa e transforma a naturalidade e a gratuidade dos relacionamentos em mais uma oportunidade de gerar lucro.


Será que essa 'volatilidade lucrativa' que alimenta o 'sistema' das necessidades modernas continuará engolindo tudo o que temos de mais precioso no SER HUMANO?


O fato é que, sem percebermos já estamos um tanto perdidos em nossa aceleração. Já estamos bem distanciados uns dos outros, da vida, e até de nós mesmos. Solitários e sem 'amigos reais', nos tornamos um simples ‘vapor’ dissolvido e esquecido na chaleira do tempo e na ebulição de uma sociedade que nunca reflete, nunca se olha, nem nunca descansa.


Ainda há tempo de escolher. Podemos fazer disso tudo uma experiência para "ajustar a rota", ou adotar essa nova tendência de "consumo humano", como um caminho onde não saberemos mais distinguir uma relação real e consistente de outra virtual e artificializada. Se essa for a escolha, seremos apenas um número a mais na "cadeia produtiva" de um sistema já falido, mas ainda insaciável. Tal como o "mercado" deseja. A consciência ou a inconsciência coletiva definirá o que ainda vem por aí.

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